Para nós, Guarani, e para populações indígenas de modo geral, a terra é uma corpa viva. A terra é nossa mãe, Nhandesy Ete, é a mãe de todos os seres humanos e não humanos da terra. Por isso, os Guarani entendem que a terra é uma corpa feminina que se movimenta de forma circular.
Na percepção Guarani, a Nhandesy Ete é ywy rupa – um berço de todos os seres da terra. Portanto, essa curadoria pensa o território através das narrativas de uma mulher, mãe que alimenta, incansavelmente, jorrando sua corpa como as tintas que são lançadas e que se espalham nas telas, abrindo caminhos de forma histérica e abarcando todas as possibilidades de percursos educativos da maneira mais generosa possível.
É a criadora que zela por suas criaturas, gesta, gera, ampara, nutre e cuida. Que se doa completamente aos seus, percebendo neles o reflexo do seu próprio ser. Uma extensão de si fora da corpa. A mãe que segue as concepções que cultivou na vida para transmitir aos seus filhos. Uma criadora que faz de seus filhos um pedaço de si mesma, até que chega um momento em que eles começam a desenvolver traços individuais, únicos, distintos dos dela.
São nesses reflexos de mãe-mulher/corpa-terra, onde todas nós carregamos traços de Nhandesy Ete, que nos vemos como criadoras de nossos próprios filhos e filhas, que se desenvolvem a partir de nós, nunca deixando de ser parte de nós, ao mesmo tempo que se desdobram e tornam-se “si”. Lívia Moura transporta esse sentimento não apenas como criadora-artista, mas como criadora-mãe.
Em sua primeira tentativa de pintura, seus filhos Teo e Kito atacam as telas com cores e formas aleatórias, que por meros segundos incomodam Lívia por eliminarem dela a possibilidade da tela em branco e o impedimento de conceber ali de uma forma que ela teria planejado. Até que percebe algo maior: uma lição que, dessa vez, seus filhos lhe dão – a liberdade de produzir com menos restrições, sem se preocupar com a imagem final, mas deixando que o processo flua naturalmente. E assim, Lívia cria a partir de seus filhos, num suposto gesto contrário ao de ser mãe-artista-geradora, permitindo que o acaso aconteça e se tornando aprendiz-experimentadora.
As marcas que foram geradas remetem às topografias geográficas da Serra da Mantiqueira, atual residência da artista, com seus rios que percorrem sinuosos e distintos vales. As tintas, produzidas organicamente a partir dos minerais naturais extraídos diretamente da região, tomam conta das telas organicamente desenhando as formas de suas origens. As cores invadem umas às outras, como os ricos minérios que invadem, mas coabitam todo o território da região. A partir dessas demarcações, Lívia intervém com detalhes que remetem a estruturas orgânicas como cogumelos, esqueletos de folhas, algas ou até mesmo formas mais abstratas que se assemelham aos entranhamentos de matérias orgânicas. Essas são as grafias que surgem da terra, com material que vem das montanhas, ricos em uma gama de minerais, produzindo as diversas tonalidades.
Nhandesy Ete, dessa vez, provém não apenas a matéria, dando a sua filha seus nutrientes e suas formas, mas age inclusive como co-criadora e guia para que Lívia cuide de suas criaturas. A mãe gera seus filhos, que por sua vez se desdobram em reflexos distintos daquela que os gerou. Nhandesy Ete potencializa o território para que Lívia transite como mulher, matéria e mãe.
O percurso de uma mãe para o povo Guarani é uma caminhada longa. São nas caminhadas que se faz no território o bem-estar dos seres da terra – os filhos e filhas de Nhandesy Ete. Este modo de movimento circular das corpas está associado ao bem-estar dos seres da terra. Isso só é possível desenvolver onde há um entendimento dessas corpas como mães e mulheres para conseguirem descansar a sua histeria de ciclo.
Nós, mulheres, carregamos a pressão de termos que atender todas as demandas sociais impostas sobre nós: temos que ser mães, trabalhadoras, esposas, amantes, benfeitoras, calmas, tranquilas, ativas, sensatas, inteligentes, sensuais e entregar tudo que demandam de nós sem nos perder. No momento em que começamos a questionar essa violenta pressão de sermos sempre super-mulheres, somos então submetidas como loucas, ou histéricas. Assim como a história de Nhandesy Ete, temos que nos atentar à preservação desta mãe, da criadora, que está sempre doando de si, porém nunca recebendo de volta. Apesar da nossa potência como criadoras, também temos que ser cuidadas como criaturas, entendendo a necessidade de poder doar de volta para ela. Mas este é um longo caminho. A corpa da mãe é um caminho a ser percorrido nesses percursos longos. O caminho longo é potentia mater sempre em movimento.
Sandra Benites e Gabriela Davies